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Diante da imensidão fria

Já passava das quatro horas da tarde quando Orvil sentou-se completamente inerte e sozinho a beira do lago. Ficou alí, parado, persuadido,complacente e perplexo. Enquanto todos os seus amigos partiram pra dar um mergulho, ele que não sabia nadar pôs-se somente a contemplar a imensidão do lago denso e amedrontador e automaticamente começou a pensar no determinado o momento e por que razão sua própria vida passou a lhe parecer tão insignificante comparada ao tamanho do mesmo lago .Uma vida insignificante, ele assim já entendia há algum tempo, mas ao mesmo tempo era uma vida ainda cheia de acontecimentos que davam a ele o direito de dar a importância que ele bem entendesse mesmo aos fatos que são corriqueiros na vida qualquer pessoa. Pois assim como a imensidão do lago com o qual ele se deparava não existia simplesmente por nada, de uma hora pra outra e era feita por cada gotícula de água acumulada, por cada grãozinho de areia diluído que lhe dava a aparência turva e por cada pedra alí reunida no fundo. Assim como cada centímetro da margem de um lago foi colocada alí acidental e naturalmente e com o decorrer do tempo passou a exercer a simples função de represar a água de incontáveis dias de chuva. Cada acontecimento que é corriqueiro na vida de qualquer um, tinham feito da vida de Orvil a vida insignificante que era. Alí sentado a beira do lago era impossível que ele não não percebesse o quanto este lago era imenso diante dele e de sua vida. A cada minuto que permanecia alí a observar o tal lago Orvil podia fazer o exercício mental necessário de diminuir-se ainda mais. Não se tratava de um exercício muito fácil e isso por que mesmo sendo muito menor que o lago ele ainda era dono de uma consciência que o monstruoso lago jamais pôde ter e reconhecendo isso também era obrigado a reconhecer que a sua pequeneza fêz-se de forma consciente a todo o momento e por cada escolha que fez pra lidar com tudo enquanto a grandeza do lago fêz-se sempre de maneira totalmente inconsciente e acidental. Pra Orvil, reconhecer isso o fazia sentir-se ainda menor e com mais asco de si mesmo e esse asco era talvez o único sentimento necessário pra que ele não tivesse dúvida alguma do que pretendia fazer. Não sei muito bem como explicar isso, mas desde que ele passou a tomar consciência de si e dos outros e tomou consciência das vontades que tinha, das vontades dos outros, das vontades que lhe eram inculcadas pelos outros e das vontades que ele mesmo devia inculcar nos outros, também passou a tomar consciência do quanto podia ou não satisfazer tais vontades, do quanto tinha ou não poder pra isso e o quanto isso era uma coisa que também ocorria com qualquer um. Isso era uma descoberta que na prática deveria ajudá-lo a agir de maneira mais despreocupada e mais confiante mas na verdade agindo nele de maneira contrária, tal descoberta fazia com que mantivesse consigo uma dificuldade enorme de decidir-se se dava atenção as vontades que eram suas e as vontades que ele sabia que não eram. Por causa da dificuldade de tomar decisões surgiu ainda mais um problema: Ele as vezes demorava demais pra se decidir e isso certamente era um problema . Principalmente quando a circunstância exigia-lhe uma decisão urgente. Por tudo isso, quantas não foram as vezes em que ele tomou a decisão certa mas esta sendo tomada tarde demais não passava de uma decisão certa e inútil. Meu Deus, por causa dessa dificuldade Orvil transformou-se num ser completamente oscilante. Se em um número considerável de vezes se acovardava de uma maneira patética e sincera pelo medo de fazer uma escolha equivocada, num outro número de vezes em que qualquer um perde a conta, ele era dono de uma audácia extravagante. Se sabendo disso também soubesse condicionar essa oscilação toda agindo de acordo com cada circunstância, sem dúvida alguma se sentiria mais satisfeito com o seu modo de agir em relação a si mesmo e aos outros, mas o que constumava acontecer é que simplesmente por pensar demais, por pesar demais qualquer coisa, ele a maioria das vezes invertia a consideração e consequentemente invertia a ação agindo com uma covardia de manso quando a situação inteira lhe pedia coragem e agindo com uma firmeza as vezes até violenta quando a situação sequer lhe cobrasse qualquer tipo de ação. Vou tentar ser um pouco mais claro, é óbvio que o que estou dizendo aqui não se trata apenas de ora ser corajoso e ora ser covarde e vice versa. Não!Seria ridículo de minha parte limitar a coisa toda nessa conclusão raza. Não é possível que haja na vida de qualquer pessoa um momento sequer em que este deva agir de maneira covarde. Por outro lado coragem é coisa que sempre nos é exigida. Até Orvil sabia disso. E pra explicar o caso dele talvez seja necessário utilizar outros termos além de coragem e covardia, por isso vou me dar ao direito de falar agora um pouco sobre o problema que ele também tinha em simplesmente lidar com o uso do sim e do não. É bem possível que você que até agora que me acompanha, esteja pensando que eu não consigo sair do plano dos extremos opostos. Reconheco! Mas falar de Orvil sem me ater a esse recurso é como pretender apresentar à alguém uma música sem sequer recorrer a qualquer mecanismo sonoro, instrumento músical. Ah você pode achar que estou vacilando de novo pois uma música pode muito bem ser escrita no papel e que existe uma linguagem própria pra isso, mas a música é compreendida quando toca os ouvidos e por mais que ela seja escrita não passa de representação do que é a música realmente e que ao ser só lida e não tocada não poderá ser compreendida em toda sua plenitude e só o que vai fazer é apenas exigir uma imaginação danada de quem quiser descobri-la. Mas vou deixar isso pra lá, não posso perder o foco senão arrisco-me a começar ficar igual a Orvil que exatamente por pensar demais sempre acabava exagerando em suas considerações. As minhas considerações são as de que ele enquanto continuava sentado contemplando a grandeza do lago, era ao mesmo tempo forçado a reconhecer o quanto um sim ou um não interferiram no rumo da sua própria vida e na vida que o cercava por todos os lados. Pra ele o mundo e a vida não passavam de um monte de sim e de não ecoando por todos os lados e que contribuem pra que enquanto alguns acabem murchando pelo uso que fazem do sim e do não, ao mesmo tempo esse mesmo uso do sim e do não, permite a outros que se inflem até chegarem a o ponto de ocupar um espaço a mais que podia ser de qualquer outro e com isso até acabam por esmagar quem não se decidiu por inflar ou murchar diante deste ser competente e inflado que além de tudo pode também acabar esmagando quem ainda não faz ideia do peso da escolha e não tem sequer o poder de decidir por si mesmo. Ora, ora ora você vai dizer que isso é uma tolice. Que tratando-se do ser humano, qualquer um tem capacidade de fazer uso do sim e do não, mas isso leva um tempo não é? Ou sou o único tolo que considera a infância humana como um período inerte quase em toda sua totalidade? A mesma infância humana que qualquer bom ou mal educador já conhece, período em já existe um ser propício a desenvolver todas as suas capacidades motoras, cognitivas e afetivas mas que está a mercê de alguém que precisa saber dizer o sim e o não por este e pra este, pra que lhe assegure tal desenvolvimento. Sim, nesse período o ser humano ou ser humanizável enquanto inerte que é não passa de uma massinha de modelar colocada nas mãos de alguém que está o tempo todo a dar bem intencionadamente ou não a forma que bem entender. E por que isso já foi reconhecido há bastante tempo, todos bradam ferozmente contra a violência infantil, defendem a família, enfatizam a escola, a educação e a cultura. Só que por mais que tudo isso seja defendido e mantido pra trabalhar no desenvolvimento de cada um, tudo isso junto ainda funciona somente como a mão que modela a massinha pra lhe dar a forma mais agradável. Mas espere! Tem mais! Agora é preciso cometer ainda o atrevimento de revelar o segredo mais absurdo de Orvil. Louco que estava, ele acreditava e dizia à si mesmo que dentro dessa massinha modelável que todo mundo foi um dia, existe uma espécie de esqueleto. Não falo de estrutura óssea, isso é só uma analogia absurda e necessária. Esse “esqueleto” é uma espécie de estrutura rígida e essêncial que é contudo uma estrutura muito frágil, muito delicada e que talvez seja até mesmo intangível, impossível de se ver em radiografias e por ser diferente dos ossos não cresce, não se modifica independente da modelagem que lhe dão. Na conclusão de Orvil, se essa estrutura se modificou é por que foi quebrada, e se foi quebrada, uma vez fragmentada não funciona mais como deveria e talvez até funcione de forma contrária. Talvez Orvil poderia apenas ter chamado isso de espirito, mas é sempre tão difícil convencer qualquer um a dar importância e o devido tratamento ao que não se vê, pra aquilo que é intangível. Orvil já entendia isso, tanto que ele sabia que qualquer um podia se sentir no direito de dizer não, que não precisava acreditar em uma vírgula do que ele falava. Qualquer um tinha o direito de ignorá-lo. Assim como ele sabia que eu mesmo poderia ter feito. Mas eu escolhi acreditar no que ele me dizia. Eu lhe disse o sim que ele precisava ouvir ( ou talvez não precisasse mais), pois apesar de ele me parecer alguém de dar pena, mesmo assim por trás daquela carranca eu ainda pude ver uma honestidade enorme nos olhos dele. Hoje quando relembro-o, vejo que talvez o grande problema que Orvil se deparou enquanto observava a imensidão do lago é que não podia mais ignorá-lo por que ele se deu conta de que o lago era assim tão grandioso justamente por que nunca houve intenção alguma lhe moldando e dando a grandeza que tinha. O lago era justamente do jeito que era em cada detalhe por que não passava de um acidente, não passava da ação da natureza agindo inconscientemente, irracionalmente e ainda assim, mesmo sendo simples obra da natureza era muito maior do que ele. Perceber tudo isso cada vez mais ia dando o direito que Orvil precisava pra corajosamente ignorar mais a si mesmo e poder ao mesmo tempo entender que ainda não passava de massinha de modelar nas mãos intencionadas dos outros, e que naquela hora alí diante do lago, ele mesmo não passava de alguém se submetendo as decisões ora covardes ora corajosas, não passava de alguém que talvez nunca soube a hora e circunstância certa pra saber dizer e ouvir um sim ou um não, não passava de alguém cheio de boas intenções tão ocas, tão inúteis, tão irrelevantes e incompreêndidas quanto podem ser as intenções de qualquer um. Ser possuidor de intenções e se deparar com tantas intenções partindo dos outros, tragicamente o fez com que apenas quisesse resumir seus esforços pra se tornar primáriamente inerte de novo, com uma folha solta da árvore e ao vento, Como se depois que essa folha realizasse o seu voo acidental estivesse apenas sujeita e pronta ao apodrecimento. Por que tudo se tornou um processo irreversível agora era preciso ir em frente e tornar-se uma nada. Mas era um nada que ele precisava enxergar em si mesmo pra tentar ver dentro de si se existia ainda aquele esqueleto essêncial e intangivel que nasceu com ele mas que certamente devia estar fragmentado, moído e soterrado por tantas intenções e ações frustradas. Por que um dia Orvil achou que tinha o direito de dar a si mesmo e as suas vontades um valor que deveria ser reconhecido até mesmo por outras pessoas, sentado alí diante do lago ele tentava fazer simplesmente o contrário, tentava ignorar a tudo e a todos com quem ele havia se importado. Tentava provar pra si mesmo que tudo não passava de uma experiência infeliz e trágica. Ah! Orvil havia se apegado tanto a tudo isso que lhe ocorrera até então, havia se apegado tanto a tudo o que intencionalmente lhe transformara mas ao mesmo tempo não passava de um acúmulo de acontecimentos que pra ele eram inconclusos e só eram inconclusos por que ele mesmo não soube tirar de tudo a conclusão que ele mesmo tanto queria. Toda a sua vida cheia de planos pra si e pros outros por quem ele havia se apegado tanto não era mais que um monte de ideias que por mais que tivessem sido vividas jamais alcançaram a forma e a plenitude que ele tanto queria dar a cada uma. Tudo era apenas um amontoado de histórias inacabadas, rascunhadas e as quais não soube, não pôde dar à nenhuma delas uma arte final. O plano de Orvil havia se tornado pretensioso demais, e sentado diante do lago ele reconheceu que mesmo quando não passava de um objeto vivo e modelavel, já possuía um esqueleto pretensioso. Um esqueleto que com o passar do tempo, em cada gesto de covardia e coragem, em cada sim e não que disse à si e a todos acabou se despedaçando enquanto a única coisa que pretendia fazer era dar à noção que tinha da existencia um estatus de obra de arte. Fracassou, sabia o quanto estava longe disso, sabia que não passava de uma garatuja de um Deus tão intangível quanto o seu esqueleto quebrado. Um Deus que pra ele não passava de um Deus injusto, que não quis tomar partido das suas pretenções. Um Deus que debruçando-se eternamente sobre sua folha de papel, fez de Orvil apenas um esboço a ser sobreposto pela tinta. Mas na verdade podia ser muito pior, Talvez ele não passasse de um risco acidental que Deus fez esbarrando sem querer sobre o papel enquanto ainda estava confuso. E como Deus não desenha munido de uma borraçha pra apagar um risco ou um erro qualquer então o erro acaba sendo escondido por outros traços mais fortes e pela tinta que vem depois. Orvil não queria aceitar que era apenas um rascunho no plano de Deus rumo à uma obra prima que ia muito além dele, mas alí diante do lago, sentiu-se obrigado a dar conta até mesmo da sua própria vaidade, do seu egoísmo, da sua arrogância e de sua falta de humildade. O imenso lago humilhava Orvil mas ao mesmo tempo, mesmo moído por dentro a única coisa que lhe atraía era a imensidão fria e inconsciente do lago.

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