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Ema, ema, ema?

Seu nome era Carlos Silva, como tantos Carlos que há por aí e como muito mais Silvas ainda. Gente simples, com problemas tão comuns quanto muitos que também já foram inventados. Mas Carlos já entendera bem isso. Também, com tantas vezes que insistiram em lhe ensinar, que embora tivesse os seus próprios problemas, havia tantos outros que talvez tivessem ainda mais. Alguns talvez fossem maiores, outros talvez bem menores, mas o que Carlos aprendera também é que as vezes o tamanho dos problemas depende do ponto de vista. E que por isso as vezes era preciso ignorar o que se via e tentar não levar isso tudo tão a sério.
Era então uma manhã de um dia como outro qualquer. Carlos se levantou sem nem ao menos ter dormido bem. Os seus problemas não o haviam deixado dormir direito. Mas apesar disso, Carlos achou que talvez hoje estivesse com sorte , pois quando chegou ao hospital, sem que o dia nem sequer tivesse clareado ainda, foi logo o primeiro da fila. Sabia que esperaria algumas horas, todavia não estaria entre os últimos desta fila que tantas vezes de tão grande perdera de vista, e que muitas vezes também por ser um dos últimos não conseguiu sequer uma ficha. Lembrou-se quantas foram as vezes em que havia passado a madrugada esperando por uma senha, um número pra que conseguisse ser atendido . E então as vezes quando amanhecia, a fila nem mais existia, pois muitos se aglomeravam e se espremiam no portão do hospital pra que conseguissem entrar logo que ele se abria. Pra que daí então estivessem certos de que seriam atendidos.
Pobre de Carlos se ele não fosse pra fila bem cedo pra conseguir um lugar, por um atendimento. Muitas vezes mesmo quando obtinha um dos primeiros números, mesmo assim, na hora de pegar a ficha que lhe garantisse o médico que necessitava, era um empurra-empurra, todo mundo em estado de nervos, ele então se via também com a necessidade de se enfiar naquele aperto.
Então Carlos, que tinha mania de pensar demais, pensou o quanto era estranho que nessa hora, quando todos ali tinham algum tipo de enfermidade, todos ao mesmo tempo achavam que a sua necessidade era maior que a dos outros, independente do horário em que se chegasse ao hospital. Isso pra ele era de certo modo compreensível, mas mesmo que todos entendessem que dificilmente alguém iria levantar tão cedo pra enfrentar uma fila de graça. De que isso importava? Quem é que nessas horas estava disposto a esperar? E assim Carlos já quase perdendo a vez de pegar sua ficha, pensou que talvez isto tudo não fosse o verdadeiro problema.
Carlos Silva agora com a ficha na mão se sentou e continuou a pensar, e enquanto pensava, olhava ao redor e via o quanto uma necessidade impossibilita as pessoas de se enxergarem melhor. Mas como é que ele sabe? Quem é que também tem tempo pra pensar nessas coisas? Ainda mais nessas horas?
Por que é que as pessoas iriam complicar tanto pensando em coisas que em tais circunstancias pareciam estar tão distantes de se resolver?, enquanto que o que realmente esperavam era um médico que pudesse lhes atender. E que tudo o que os incomodasse o doutor desse um jeito de resolver. Mas acho que Carlos pensava mesmo é pra esquecer sua dor, e esquecer que nessa hora os mesmos que concorrem à um atendimento é que realmente incomodam ou sentem se incomodados.
A balconista que se não tinha também trazido seus problemas de casa, certamente ali arranjou problema suficiente, mas mesmo assim chamou por Carlos que então interrompeu os seus pensamentos e se apressou pra ir a sala de atendimento. Carlos sabe que os médicos também devem ter seus problemas e muitas vezes na pressa de resolve-los, não chamam mais de uma vez. Muitas vezes quando atendem seus pacientes nem sequer os tocam direito e muito menos os olham nos olhos. Apenas fazem perguntas enquanto não tiram os olhos de seus formulários onde anotam as suas receitas médicas. Atendem assim uns dez números no máximo, então correm para os seus consultórios particulares, onde seus clientes podem pagar mais e não ficam criando tantos problemas. Onde só daí então estes mesmos médicos conseguem enfim tocar e olhar nos olhos de seus clientes. E assim fazem exames minuciosos, até que por fim, apertos de mão e sorrisos terminam a consulta.
E então Carlos começou a pensar de novo sobre o que interferia tanto nessa diferença de tratamento. Como podem os seres humanos por causa de seus problemas serem tão desumanos ao mesmo tempo? Carlos gostaria de ter a certeza de que essa pergunta é mesmo necessária ou que todos estariam dispostos a descobrir a resposta, mas isso pode não ter importância alguma. Talvez fosse melhor ele simplesmente pensar em curar a inflamações, pois do contrário haverão muito mais noites mal dormidas e infelizmente mais tempo ainda pra pensar em coisas que só lhe aumentarão os problemas.
O médico preenche a receita de maneira completamente ilegível, como de costume, e assim termina a consulta. Carlos até que se arrisca a fazer alguma pergunta, mas nesta hora o médico já dizia até logo e então chamava pelo próximo paciente ou pelo próximo problema.
Carlos então se dirige ao balcão pra pegar seu remédio e enquanto espera de novo, repara que a recepcionista ligara a TV pra entreter os outros que também permaneciam na espera. Carlos um pouco desolado, vê então uma apresentadora comentar sobre algo que lhe pareceu diferente, mas que não lhe pareceu completamente novo. Parece que a apresentadora recebera em seu programa um rapaz e uma moça de muito boa aparência que se apresentavam como “Amigos de Aluguel”, que pareciam poder resolver qualquer espécie de problema. Que trabalhavam como acompanhantes para pessoas que não queriam ficar o tempo todo sozinhas, e que acompanhavam estas à restaurantes, cinemas, reuniões, etc. E que ainda dependendo do quanto o amigo-cliente pagasse, podiam até oferecer uma aproximação mais íntima.
Carlos então sentiu-se muito confuso com tudo aquilo. Pessoas oferecendo acompanhamento à pessoas sozinhas, negociando uma companhia? Mesmo com tudo o que presenciara naquela manhã. Mesmo vendo o modo como cada um e ele inclusive era as vezes obrigado a se comportar por não ter a certeza de um tratamento com o mínimo de respeito, por não ter o mínimo de assistência, por não ter garantido ao menos o que lhe parecia direito. Carlos com resignação, olhou pra alguém que também aguardava na fila e sorriu . E então Carlos pensou o que seria de todos se não houvessem amizades sinceras e se não lhes fosse mais garantida às pessoas a decência e a dignidade. Carlos pensou o quanto seria bom se pra que existisse tudo isso não precisasse existir o dinheiro, ou que mesmo este existindo, que entre todas as coisas ele não fosse o primeiro, que todos enxergassem uns aos outros de verdade pra assim poder ver muito mais do que a cara que vai estar estampada numa moeda..
Carlos já estava cansado de tanto pensar, mas mesmo assim pela última vez muito triste pensou que se não podia pagar à um médico pra ser seu paciente-cliente e ter um atendimento em seu consultório particular, quem diria então poder pagar à um amigo de aluguel pra que fosse então seu amigo-cliente, e pudesse então em vez de pensar, conversar sobre o quanto ele gostaria que o mundo fosse bem diferente. E Carlos não podia pagar, mas muito mais do que isso tudo, Carlos não queria.

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