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O bêbado anônimo e o esmagador de dedos

Isso foi há algum tempo atrás, durante uma gelada manhã. No meio da praça central da cidade, lá estava aquele ser tão miserável e desprezível deitado no chão. Em seu fedor de álcool e suas roupas imundas ele pouco se importava, pelo menos até seu último gole, a dose que fora suficiente pra lhe fazer perder os sentidos, pra que assim então desprevenido aquele sujeito mundano, adormecesse na rua em frente a uma igreja aonde havia um muro em que estava pintada a imagem de Cristo. Um muro que talvez não devia sequer existir, mas que estava ali e foi onde aquele homem também pois pra dormir todas as suas angústias, num momento de desatino.
Dormiu feito um menino, o homem. Descoberto naquele chão duro e frio como a parede em que estava pintada aquela imagem e a frase que lhe dizia: - Venha! Este é o caminho! Quem pode dizer o quanto desesperançoso aquele bêbado imundo estava antes de ali ter caído. Caiu feito um tijolo e desejou lá no fundo que aquilo fosse verdade e que realmente aquele fosse um caminho, mas ele mal pôde ver a diferença que existe entre o que era real e o que não fazia sentido. E assim mesmo, bêbado e só ele adormeceu desejando poder encontrar aquele rosto e aquele olhar terno em seus sonhos de novo.
Mas em que tamanha desgraça se transformou a vida deste coitado, que se algum dia teve vida, se foi o mínimo digna, o que poderia ter lhe causado tamanho infortúnio? Eu realmente não sei e acho que ele deve se perguntar e de algum modo em seus sonhos ele também quisesse perguntar para aquela imagem que lhe sugeria um caminho de pedra que sem mal ter começado acabava ali junto ao pé do muro.
Que vida injusta e cheia de vicissitudes era a daquele homem que não sei se foi incapaz de sonhar ou se sem parcimônia alguma mergulhou tanto em seus sonhos que acabou se esquecendo de agir no mundo real. E que assim acordou num pesadelo ainda maior diante da face do mal que existe na justiça injusta dos homens. Pois como quem vai do céu ao inferno em apenas um segundo, aproximou-se dele a imagem de um outro homem: o esmagador de dedos, que o despertou pisando-o com seu coturno, esfregando-o como quem com os sapatos mata uma barata ou apaga um cigarro, ferindo a mão desse pobre homem e chamando-o de vagabundo.
E que homem bem sucedido e privilegiado era aquele esmagador de dedos. Em sua força física, em sua condição de cidadão cumpridor da lei, em seu distintivo, em sua arma calibre 38 na cintura, em todo seu senso de justiça. Sim, aquele esmagador de dedos era superior. Naquele momento não havia ninguém acima dele, não havia ninguém que fosse capaz de o olhar no fundo do olho e questionar seus métodos de imprimir a decência. Por isso, munido de chumbo, de toda superioridade e obviamente com uma auto-confiança egoística de si, este homem fazia um movimento calculado e lento, mas pesado o suficiente pra ferir os dedos do homem jogado no chão, e que em sua inferioridade e sua humildade estendia a sua outra mão suplicando um pouco de piedade.
Enquanto isso a imagem pintada no muro assistia a tudo tão insignificante e ignorável quanto o pobre homem deitado. Tão catatônica quanto a minha própria imagem naquele momento. Tão bruta e rude quanto aquele esmagador de dedos sentindo-se pleno em sua razão e que por assim sê-lo não sentia motivo algum pra se perguntar se o que fazia era certo, errado ou se nisso havia só a maldade e mais nenhum sentimento.
Então, assim que pôde e sem demorar muito, sem ter esperança,sem poder vacilar, com as suas mãos vertendo em sangue, o homem bêbado se levantou e começou a procurar por um caminho. Qualquer outra direção desde que não fosse aquela sugerida pela frase no muro, desde que pudesse ir pra longe do esmagador de dedos. Pois este outro ainda ficou ali por mais tempo, parado, só pra ter certeza de que aquele bêbado sujo, safado não mais voltaria pra tentar achar ali seu conforto. Pra zelar pela boa aparência em frente aquela igreja. Em frente aquela imagem tão bonita e que estava sendo estragada pelo homem bêbado e de má conduta.
O homem bêbado e anônimo se foi e só daí então o esmagador de dedos se afastou do muro e se aproximou de mim e mais alguns que presenciaram sua atuação. Fez questão de nos estender também a mão e nos olhando de um modo não menos ameaçador, pareceu só querer deixar clara sua grandeza. E através de toda sua rudeza, com seu sorriso cheio de cinismo e seu olhar me queimando como fogo, este homem duro como pedra e tão vazio e podre, me esmagou também os dedos como se me dissesse que eu guardasse tudo isso em segredo. Depois ele apenas foi embora, assim como aquele bêbado anônimo já havia partido e que por ele também seria facilmente esquecido. Eu congelei-me em meu ódio e me tornei tão frio quanto aquela manhã, frio como aquele homem me sorria enquanto além de me esmagar os dedos esmagava minha indignação. Já meu olhar eu fui obrigado a desviar dos olhos do esmagador de dedos, como se estivesse olhando pra dentro de mim ao mesmo tempo em que o via em minha frente. Eu não tive como encara-lo, não com meu olhar ferino, não com aquele meu ânimo de covarde. No fundo eu não sei o quanto eu mesmo me senti pior do que aquele esmagador de dedos e pior também do que o próprio bêbado.
Meses depois fiquei surpreso quando vi num desses santinhos que os políticos jogam pelas ruas durante campanhas eleitorais, que lá estava ele: o esmagador de dedos. Era candidato ao cargo de legislador local e naquele papel com sua imagem pedia o meu voto de confiança. O curto texto que o descrevia assim dizia: homem justo, cristão, pai de família com vocação em defender a lei e enorme preocupação em fazer o bem. Lembrei então daquele homem desvalido em sua ingênua e solitária embriagues a mercê do esmagador de dedos. E me senti aliviado. Eu , mesmo com meu egoísmo. Eu, com a maldade que também possuo. Eu, com uma maldade as vezes tão inconsciente e a espera de absolvição quanto o sono daquele bêbado. Essa mesma que alimentou a raiva que me fez descrever as coisas desse jeito. Sim eu me senti aliviado por aquele bêbado, por mim e porque mais tarde o esmagador de dedos, não havia sido eleito.

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