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O criador sangra mas não sente dor. Daltônico que ainda é, sequer se intimida com o vermelho do seu próprio sangue.

O Criador era criança ainda quando certo dia (ou noite) inexplicavelmente de repente viu-se muito só. Não havia nada que pudesse livrá-lo do insondável tempo que o cercava, nada que pudesse distraí-lo de si mesmo no meio do seu silencioso nada. Então, naturalmente deixando-se contagiar por um estranho afã, o Criador decidiu inventar algo com que pudesse se divertir. A ideia lhe veio num salto, e ele então que não sabia evitar nada do que lhe vinha a cabeça, começou logo a criar um grandioso teatro. Ele era uma espécie de mágico quando algo lhe comovia e por isso mesmo sequer tinha que se pôr a pensar demais. Sendo assim, o Criador já foi criando tudo de maneira fervorosa e febril. Sua imaginação era tão criativa e clara que deixa mais do que claro porque ele se chamava O Criador. Na sua cabeça tudo ia surgindo tão fácil, tão em medida exata que desde os primeiros detalhes por ele imaginados sua alma já começava a se alegrar e produzir cada vez mais. Era uma alegria epopeica, mas livre de qualquer pretensão. Se a coisa toda era pra ser apenas um grande teatro, bastava que surgisse um primeiro ato que o ato seguinte teria criatividade própria, bastava que fossem surgindo as personagens que até os figurinos e a cenografia iriam surgindo também. Tudo foi se criando, os dias e noites então foram passando cada vez mais depressa e enquanto isso O criador cada vez mais regojizava-se na sua incompensável e distraída solidão. Completamente só que ele era não era possível qualquer barganha com nada. Único e pleno de uma criatividade que só ele podia ter, não era preciso haver moeda alguma, não havia ninguém a quem ele precisasse pagar qualquer coisa pra contemplar o que ele via diante de si. Bastava somente que contemplasse a coisa toda, nada mais. E a coisa toda ia até muito bem graças a capacidade lúdica que tinha esse tal Criador, mas eis que de repente, inexplicavelmente, a liberdade criativa que O Criador havia transmitido de maneira ingênua ao seu grandioso teatro começou a ser tomada por uma atividade e seriedade que nenhum criador de primeira viagem já foi capaz de imaginar. As personagens (isso pra não dizer suas criaturas) começaram questionar seus papéis, começaram a querer trocar de papéis uns com os outros. Todas ao mesmo tempo, que era injustamente o mesmo insuportável tempo pro Criador. Todas elas começaram demonstrar uma incapacidade enorme de somente encenar e seguir seus roteiros, de apenas desenvolver seus papéis pantomímicos. Por isso começaram a sentir-se insatisfeitas consigo mesmas, a se estranhar e a odiar umas as outras. E a insatisfação era tanta que as personagens absurdamente começaram a escapar das cenas, começaram a querer falar, balbuciando sonoridades ensurdecedoras nos ouvidos do Criador. Não bastasse isso, as personagens então começaram e querer falar com O Próprio Criador questionando-o, contradizendo o que ele nunca precisou dizer. A diversão parecia ter encontrado seu meio e fim e insatisfeito também com isso tudo, O criador percebeu que no seu ímpeto natural e inescrupuloso de criar, acabou deixando inúmeras falhas em pequenos, mas imprescindíveis detalhes. Então finalmente (porque essa história já se aproxima de um fim) o Criador percebeu o quanto foi arbitrário. Que não custava nada pra ele ter imaginado apenas algumas cordinhas e tornar o teatro e suas personagens mais controláveis. É certo que se assim fizesse todas elas não passariam de marionetes confinadas, limítrofes,entendo porque não o fez: todo criador que ainda é infantil pode de repente também se cansar e apenas desejar dormir. Mas o que as marionetes fariam então diante do sono sem mãos que o Criador iria ter? Não fariam nada, só que o nada era justamente uma das coisas que ele não queria se acostumar ou suportar. O Ingênuo Criador acabou sentindo-se fraco diante do próprio teatro e acabou também se lembrando de outras questões valiosas e impertinentes as quais não deu a devida atenção durante seu espontâneo processo de criação. Se tivesse imaginado que seu teatro alcançaria proporções tão majestosas, teria previsto que incontáveis palcos iriam surgir, cada um em uma esquina, em cada casa, com todas as personagens desejando serem protagonistas, outras vezes coadjuvantes, mas em nenhuma delas tendo a humildade de serem só meros figurantes. Veja só a tamanha confusão que o Criador inventou: Se causava horror às personagens serem apenas figurantes no seu teatro, horror maior ainda pra elas seria ter que descerem do palco pra virar plateia, e completamente excluídas da história ainda ter que aplaudir o que viam. Descer do palco se tornou o inferno pra elas! Discorde do que vou dizer quem quiser, afinal, não passo um membro da excluída plateia, mas criadores precisam de plateias, precisam de aplausos, e mesmo que entre os aplausos surjam algumas vaias ou apenas olhares indiferentes, jamais qualquer criador desejou ter a arrogância e incoerência de aplaudir ou vaiar a si mesmo, ainda que fosse criança. Mas a coisa toda foi acontecendo e o teatro livre de responsabilidades do Criador desde então desenvolve atividade própria, atividade tão autônoma essa, que desde então deu a si mesma nome de vida, de morte, de realidade. Porque as personagens (as criaturas) não puderam entender o que não passava de um faz de conta, agora vivem, reproduzem-se de maneira vertiginosa, e com uma liquidez dolorosa. Quando a dor que estas sentem ainda não é o bastante, vão se matando apenas, numa guerra cheia de frieza em que o sangue e seu calor também jorram de maneira cruel e verdadeira. É até bem possível que um dia (ou noite) tenha passado pela mente explosiva do criador uma guerra ou outras várias, mas na sua inocente cabeça essas guerras todas seriam feitas apenas de bolsinhas cheias de tinta vermelha escondidas por de baixo do figurino, guerras feitas de balas de festim que nada precisariam fazer além de intimidar os ouvidos. Mas agora no festim dos vencedores da guerra, os miseráveis perdedores que tiveram que descer do palco, por uma inveja justa já não querem mais aplaudir qualquer misancene, menos ainda as envaidecidas e egoísticas personagens que apelaram pra manterem-se em cima do palco, menos ainda as que sem explicação alguma meteram na própria cabeça a insistência de se manterem cada vez mais em primeiro plano. Agora e por tudo isso, os miseráveis excluídos da principal cena passam a transformar água em álcool, recomeçam tudo de novo dentro das cabeças que também tem, se sentem capazes de resgatar a artificialidade perdida, sagrada e primeira que havia em tudo, a animalidade ocultada, mas evidente no próprio criador. Só pra se embebedarem mais, só pra distraírem-se ainda mais das mesmas incompreensíveis cenas carregadas de realismo que nunca foi necessário existir. Os imorais e embriagados agora são os mais sóbrios que existem, até mesmo entre os melhores atores, se sentem mais irreais enquanto bebem, sentem se capazes de fingir até bem melhor qualquer coisa que inevitavelmente continua escapando das cenas tentando se tornar real. Enquanto mergulham dentro do mesmo nada que o Seu Criador jamais suportara, seguem deixando viver o que lhes desperta o gosto e quando não podem, apenas matam os que teimam em continuar vivos e sem capacidade alguma de atuar. Não se confundam! Os imorais da história não fazem viver ou morrer qualquer coisa de maneira real, essa realidade alcançada pra esses é insuportável. Então estes quando dão vida ou matam, fazem isso tudo apenas aos goles, dentro de suas próprias cabeças. Nada precisava ser tão aterrorizante, nada deveria ir além de um teatro projetado pra que o Criador pudesse divertir a si mesmo. Mas a realidade agora já é mais que pungente e o Criador que não soube garantir a si mesmo o direito de interferir em tudo que ele mesmo criou (o criador ainda não tinha em si arquitetura do tipo), tentando ser razoável não quis interferir mais em nada, não quis mais direcionar qualquer coisa, foi deixando coisa toda naturalmente alcançar o corpo todo que um dia ele mesmo imaginara. Tudo foi apenas prosseguindo desde então, sem que qualquer um precisasse assumir qualquer espécie de culpa. Pra que isso? Tudo o que o Criador quis um dia foi se livrar de sua enorme solidão, nada deveria ter atingido tamanha proporção. Tudo era só uma brincadeira, um jogo de imaginação, mas que por teimosia vive e morre até hoje, a cada dia mais deixando-se consumir por uma real, incompreensível e infantil solidão na qual qualquer um além do Criador jamais desejou se encontrar. O fabuloso teatro que inicialmente era pra ser salvador infelizmente tornou-se apenas o teatro do opressor. Mas o que mais poderia ser feito ou pensado? Fez o que pôde, imaginou o que era possível e mesmo assim não atingiu qualquer plenitude. Agora oprimido a essa altura do campeonato (teatro), o Criador ainda quis balbuciar qualquer palavra impossível, sentiu-se até mesmo um espécie de Deus enquanto ia aprendendo a falar qualquer coisa que fosse ao mesmo tempo em que seu sangue jorrava. Mas obviamente, o Criador não falou nada que fosse compreensível. Enquanto sangrava pela criação, nem mesmo sentia espécie alguma de dor. O criador era criança ainda, e mais do que isso também sofria de um daltonismo sem raiz clara. No seu sombrio incurável sofrer o Criador fez o que lhe parecia possível, encarou as intermináveis tonalidades de cinza e foi colorindo somente as imaginações que ainda podia ter. Isso parece uma incompetência enorme do Criador, mas não era, era amor apenas e um amor que o enlouqueceu. Agora louco que ele está, se sente até capaz de jurar que ele mesmo jamais existiu e só por que desenvolveu tal capacidade insana, hoje ele não se deixa intimidar por qualquer coisa, por qualquer nada, qualquer gota de sangue que venha a brotar do seu próprio corpo e menos ainda a que venha a brotar do corpo de qualquer outro. De maneira teatral ele finalmente distrai apenas a si mesmo, dança uma música que só ele é capaz de ouvir e vai sangrando enquanto isso, quase naturalmente,numa cor de sangue que pra ele ainda não existe, que não está em veia alguma mas que sempre teima em saltar num vermelho profundo diante dos seus olhos imaturos e verdes.

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